sobre pontes e travessias
O primeiro passo rumo a rotina cotidiana é ligar o rádio logo cedo para deixar a música envolver os espaços da casa e tomar conta do corpo um tanto sonolento. Depois dos primeiros movimentos do dia, do banho à lavagem da louça do café, o próximo espaço é o do ateliê; ligar o computador para atualizar os e-mails e abrir o programa de edição de vídeos. A mesa de trabalho fica próxima à sacada aberta sobre a rua. Lá fora a manhã embala outros fluxos como o das nuvens, do vento e de pássaros que voam por entre os galhos da grande árvore que se estende imponente sobre a distância entre o prédio e o outro que se eleva na calçada em frente. Lá embaixo, sons da rua invadem o ateliê; pessoas e veículos que passam enquanto as crianças na creche ao lado riem e brincam (faz bem experimentar a felicidade de suas vozes que evocam lembranças deliciosas da infância já tão distante). A câmera montada no tripé, captura no modo movie esses fluxos que se traduzem como signos da transitoriedade e efemeridade da vida – talvez resida aí a insistência em trabalhar com uma muito usada câmera digital que impregna as imagens com ruídos que guardam as marcas da passagem do tempo como testemunhas da fugaz permanência das coisas.
A imagem instável revela uma agradável dose de precariedade, como se tudo estivesse a um passo de se desmanchar, indicando a impossibilidade de uma história linear. Procuro então tirar proveito desse efeito que a máquina desgastada adiciona às imagens, principalmente naquelas de fluxos etéreos de nuvens e de paisagens deixando-o a mostra em vídeos como sobre pontes e travessias (2011). Um barco, ou melhor, a proa branca de um pequeno barco desponta no primeiro plano. O branco contrasta com a cor cinza que satura toda a cena. Plúmbeo é o mar, assim como o céu e a paisagem que se entrevê ao fundo banhada em água de chumbo. No segundo plano, o fragmento de uma ponte atravessa a imagem de ponta a ponta, ligando o que não se vê àquilo que não se sabe e que repousam inominados fora do plano. Silenciosa, a imagem demanda uma escuta em constante estado de atenção sobre os sons do mar, da ponte, e do recorte da paisagem urbana que se insinua ao longe. O barco não ultrapassa a ponte, não chega mesmo a alcançá-la. Tudo se mantém a distância como se fosse essa a condição daquele que se lança ao mar. Como se essa distância guardasse em si mesma a qualidade do inatingível. Saber que a vida está sempre por um fio e que as fotografias anunciam um lugar no álbum de memórias, me impulsiona a viver essa paisagem mar-rio-barco-ar-árvore-pássaro-flor intensamente.
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